quinta-feira, 31 de março de 2011

Lobo Antunes fez há uns tempos uma crónica chamada «O ''Já'' e o ''Ainda'' »... que se adapta ao tema do nosso blog

O meu pai contava que um primo dele, muito novo então, encontrou um tio de ambos num bar de alterne, desses que outrora se chamavam dancings. O tio, homem solene e distante, perguntou com severidade ao sobrinho - O menino já por aqui? e o primo do meu pai respondeu com outra pergunta - E o tio ainda? Este episódio vem-me muitas vezes à cabeça porque não acho maneira de perceber se pertenço aos já ou aos ainda. Ou então para algumas coisas sou já e para outras ainda. Sou ainda por exemplo, quando assisto a um jogo de futebol de miúdos, a bola, mal rematada, me vem parar aos pés e não resisto a devolvê-la, feliz, num chuto com estilo, depois de a fazer saltar duas vezes no joelho e nesses momentos recupero instantaneamente a infância e a alegria. Sou já nos restaurantes, se as crianças correm mais de um quarto de hora aos gritos entre as mesas e me apetece passar-lhes uma rasteira primeiro e estrangulá-las depois num rilhar de dentes vingativo, escorrendo baba do queixo. Sou ainda no prazer que se mantém, de andar pela berma do passeio naquelas pedras compridas sem pisar os riscos que as separam, ou caminhar só pelos quadrados pretos do chão da cozinha. Sou já ao pensar, como o poeta francês, que o amor é um verbo impossível de conjugar dado que o pretérito não é perfeito, o presente pouco indicativo e o futuro condicional. Sou ainda no desejo de repetir o ardil antigo que montei uma ocasião durante um velório: a entrada e a câmara-ardente estavam separadas por um corredor estreito e escuro, eu, postado a meio do escuro, cochichava com amabilidade aos visitantes que se aproximavam às cegas - Cuidado com o degrau e ficava a vê-los levantarem o sapato e desequilibrarem-se num chorrilho de palavras pouco de acordo com a dignidade da ocasião, desembocando diante da urna aos impropérios: era extraordinária a forma como coravam ao tombarem no colo da família de luto. (A propósito de velórios o avô do lado da minha mãe era um ainda por distracção: estava sempre noutro lado. Narra-se que com a defunta na urna, e ele a pensar sei lá em que assunto, animou o acabrunhamento do viúvo numa palmada solidária - Não pense mais na morte da bezerra. Sou já quando a funesta sensação de para quê me visita e fico no sofá a remoer melancolias difusas e a somar os cabelos brancos com ódio. Sou ainda nas manhãs em que depois do banho faço passes de muleta com a toalha, recebendo o vapor de água com naturais templados e rematando a série num passe de peito estupendo que derruba todas as coisas do lavatório, creme de barbear, pente, escova dos dentes com o respectivo copo, etc., e indiferente as coisas derrubadas me afasto para o quarto num garbo infinito, arrastando a toalha-muleta no soalho, seguro de merecer orelhas, rabo e pata e sair em ombros da praça do andar no sentido dos elevadores. Sou já em certas tardes de chuva, no Inverno, em que a tristeza do céu destinge para mim e me enrodilho, cinzento na poltrona, com a alma mais dorida, a pobre, que um estudo de Chopin, me vem à cabeça o revolver na gaveta do guarda-fato e continuam a chover, por dentro dos meus olhos, lágrimas de gruta sem fim. Sou ainda ao saltar ao eixo sobre o puf da sala ou ao fazer braços de ferro imaginários com o grande Tarzan Taborda, campeão de luta-livre terrível, meu ídolo e meu amigo e, (desculpe lá, Tarzan Taborda) ganho sempre. Sou já em alguns crepúsculos de Verão, na praia, vendo o Sol desaparecer na água e a minha vida com ele, sobretudo a saudosa fracção da minha existência em que, aos dezoito anos era o pavor das mães e o regalo das filhas nos bailes de sábado dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, me murmuravam durante os boleros - Tem os olhos tão azuis, seu fofo isto as filhas, claro, o que as mães murmuravam quando me aproximava para uma nova dança era mais do género - Desapareça antes que chame o meu marido que é estivador e lhe dá um murro no alto da cabeça que fica oito dias a cuspir brilhantina. Portanto, feitas as contas, sou ao mesmo tempo o primo do meu pai e o tio de ambos e ainda talvez um terceiro, nem carne nem peixe, que escreve isto, lhe põe um ponto final e circula por aí, de mãos nos bolsos, a hesitar entre um ensaio de Literatura Comparada e o jornal desportivo de há um mês, que não sei quem comprou para esconder a última Playboy: tenho a certeza que a autora do ensaio nunca me chamaria fofo mas espero que a playmate da dupla página central não se faça escoltar pela mãe e aceite um bolero.
António Lobo Antunes in Visão


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